Hoje, escrevo este artigo a fim de defender a doutrina
bíblica da justificação/salvação pela fé apenas (conhecida como "sola
fide"). Essa doutrina é, a meu ver, a principal marca distintiva do
protestantismo, e aquilo que lhe dá toda a coerência lógica e teológica como
ramo da Cristandade a parte. Se alguém o negar, e quiser ser coerente,
automaticamente deveria abraçar a cosmovisão católica romana ou ortodoxa
oriental. Por essa doutrina da "sola fide", muitos foram presos,
torturados e queimados vivos. Agora, depois de cinco séculos, muitos dos ditos
"protestantes" tentam voltar à opressão e insegurança gerada pela
práxis e ensino da Igreja Medieval. Ao afirmarem que podemos perder a salvação
por usar bermudas ou barba (para os homens), brincos e batom (para as
mulheres), experimentar bebida alcoólica, torcer por um time de futebol, jogar
RPG, ou mesmo afirmar com certeza que um verdadeiro cristão que se suicida vai,
infalivelmente, para o inferno, muitos pastores estão cuspindo sobre as cinzas
dos reformadores.
Vários versículos do NT, especialmente da epístola aos
Romanos (que trata de forma especial de temas relativos ao pecado, à graça, à
predestinação e à natureza humana) dão base para o ensino apregoado pelos
reformadores, de que a salvação independe de nossas obras, sendo pura graça (favor
imerecido) da parte de Deus. Vamos conferir alguns deles:
"E todos nós recebemos também da sua plenitude ,e
graça por graça" (Jo 1.16)
"Estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos
vivificou juntamente com Cristo(pela graça sois salvos, (Ef 2.5)
"Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e
isto não vem de vós ,é dom de Deus" (Ef 2.8)
"Sendo justificados gratuitamente pela sua graça,
pela redenção que há em Cristo Jesus" (Rm 3.24)
"...mas o justo pela sua fé viverá" (Hc 2.4)
"Porque nele se descobre a justiça de Deus de fé
em fé, como está escrito: Mas o justo viverá da fé. (Rm 1.17)
"Por isso nenhuma carne será justificada diante
dele pelas obras da lei, porque pela lei vem o conhecimento do pecado."
(Rm 3.20)
"Tendo sido,pois, justificados pela fé, temos paz com Deus, por
nosso Senhor Jesus Cristo;" (Rm 5.1)
"Que diremos pois? Que os gentios, que não
buscavam a justiça, alcançaram a justiça? Sim, mas a justiça que é pela
fé." (Rm 9.8)
"Ora, sem fé é impossível agradar-lhe..."(Hb
11.6)
"Quem crer e for batizado será salvo (Mc 16.16)
“Todo o que o Pai me dá
virá a mim; e o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora”.(Jo 6.37).
Mas, alguém dirá, e as diversas passagens na qual Cristo afirma que se fizermos/deixarmos de fazer algo (falar mal do irmão, por exemplo) poderemos ganhar ou perder a salvação? É preciso, na interpretação desses versos, usar a distinção entre Lei e Evangelho. Lei é tudo aquilo que nos oferece o perdão e a salvação a partir de nossos próprios méritos, sendo condicional ao cumprimento dos termos por nós. Não está restrita ao bloco de textos que chamamos de Antigo Testamento, mas pode ser encontrada também no Novo, como as passagens aqui tratadas. Tal como o castigo de Tântalo, a Lei nos oferece algo necessário e desejoso que jamais poderemos alcançar por nós mesmos. Já o Evangelho é a promessa amorosa de Deus de redenção gratuita, na qual Ele nos concede a fé dirigida a Ele mesmo, pela qual somos salvos. Nenhuma pessoa em sua sã consciência acharia que pode cumprir todos os mandamentos da Lei instituídos por Cristo. Qual de nós nunca escandalizou ou escandaliza alguém (Mt 18.8)? Confesso que, com meu hábito de assistir televisão, escandalizo os irmãos da Igreja Deus É Amor. Qual de nós nunca chamou/considerou ou chama/considera um irmão como um tolo ou falso cristão (Mt 5.22; Rm 14.4)? Confesso que durante muito tempo, julguei como ímpios meus irmãos católicos romanos e ortodoxos orientais. Nenhum de nós consegue cumprir os mandamentos, nem os da lei mosaica, nem os da lei de Cristo (que, na verdade, não é uma nova lei, como alguns inimigos da "sola fide" costumam dizer, mas sim a antiga lei aperfeiçoada. Sugiro a leitura dos "Estudos no Sermão do Monte", de D.M. Lloyd-Jones para o melhor entendimento desta ligação). O que fazer então, já que se depender de nossa própria obediência, estamos perdidos? Jesus traz a resposta na passagem de Mateus 19.23-26: Para os homens, é impossível que eu e você, pobres pecadores, sejamos salvos (Is 59.2). Mas para Deus, nada é impossível. Assim, quando somos recebidos pelo Pai, somos totalmente perdoados de nossos pecados, recebemos o penhor irrevogável do Espírito Santo (II Co 1.22), e a obediência perfeita de Cristo nos é imputada (Rm 4.5). Somos salvos graciosa e gratuitamente.
A ideia da salvação através dos próprios méritos é uma
constante na história das religiões, pois representa a sabedoria carnal,
terrena e diabólica na qual todos os homens estão presos desde o pecado de
Adão. Mas a Bíblia nos apresenta outra coisa. Primeiro, ela nos rebaixa até o
inferno, nos provando sobejamente que somos indignos, maus e vis, não possuindo
aquilo que é necessário para alcançarmos a Deus. Depois, ela nos eleva até o
céu, ao dizer que o próprio Deus é quem provê o que é necessário para a nossa
salvação.
Mas, Giovani, você não está defendendo o
antinomianismo? A Bíblia não nos diz que sem santificação ninguém verá a Deus
(Hb 12.14)? Que na Cidade Santa apenas os justos entrarão (Ap 22.15)? Em
momento algum eu defendi o antinomianismo! O que digo é que não devemos
"por o carro na frente dos bois". As obras e a obediência não são a
causa de nossa justificação/salvação, mas a consequência natural desta. Costumo
utilizar a seguinte analogia: uma luz não brilha PARA ser luz, mas porque JÁ É
luz. Assim sendo, a nossa obediência aos mandamentos de Cristo e as boas obras
que realizamos devem brotar naturalmente de uma fé viva e verdadeira, como os
frutos brotam naturalmente das árvores (Mt 12.33). Devemos mostrar a nossa fé
(causa de nossa justificação) por nossas obras (consequencias de nossa
justificação- Tg 2.18). Muitos homens de Deus, como Calvino, Spurgeon e
Lloyd-Jones souberam perfeitamente disso, e conciliaram de forma bíblica a
doutrina da perseverança dos santos (vulgarmente conhecida como "uma vez
salvo, salvo para sempre") com a necessidade (também bíblica) de
obediência, mortificação e boas obras. As obras agradáveis a Deus são aquelas
que provêm da fé e do amor. Como disse Basílio de Cesareia, se servimos a Deus
por medo de punição, somos escravos. Se servirmos visando recompensas, somos
mercenários. Essas obras de fé são as obras das quais Tiago fala que, de certo
modo, justificam, pois derivam
logicamente da fé verdadeira. Devemos lembrar que o termo grego “dikaioo”,
traduzido por “justificação” e afins no NT, pode ter dois significados:
reconhecer como justo (nesse sentido, somos justificados pela fé apenas), ou
mostrar ser justo (as obras das quais Tiago fala).
No coração dos eleitos de Deus, a doutrina da salvação
pela fé apenas, não produz aquela preguiça e indiferença que costuma brotar no
coração dos falsos convertidos, mas sim uma gratidão enorme (Sl 116.12) e um
desejo amoroso de se amar à Deus cada vez mais, cumprir seus mandamentos e
fazer a sua obra. Que o diga Martinho Lutero, que após anos oprimido pelo medo
da justiça divina (que ele não compreendia corretamente), encontrou a paz na
misericórdia infinita de Deus.
Analisando a "sola fide" historicamente,
alguns poderiam argumentar que ela foi criticada pelos Pais da Igreja. Nessa
colocação, devemos observar algumas coisas: 1. Os Pais da Igreja, por mais que
tenham sido excelentes teólogos e os primeiros exegetas, não eram infalíveis.
Como protestantes, aceitamos a Bíblia como única regra de fé. Portanto, se as
Escrituras afirmam a sola fide, mesmo que todos os Pais a negassem, ela seria
verdade. 2.Em muitos trechos, os Pais parecem afirmar, sim, que a salvação é
pela fé apenas, como na I Epístola de Clemente aos Coríntios e na Demonstração
da Pregação Apostólica, de Irineu, além de escritos de Agostinho e muitos
outros. . 3.Temos que entender que os Pais viveram num período conturbado, em
que as heresias gnósticas e maniqueístas, pregando um fatalismo extremo e o
antinomianismo, forçaram eles a defender a necessidade de boas obras para a
vida cristã. Mas, se eles ressuscitassem na época na Reforma protestante, em
que o perigo era exatamente o contrário (excesso dado ao papel humano na
salvação), provavelmente teriam manifestado uma outra faceta.
Mesmo na teologia medieval, alguns teólogos tenderam,
em seus escritos, para a ênfase na fé como instrumento de justificação, como
Bernardo de Claraval (de quem Lutero foi um profundo admirador) e Jerônimo
Savonarola (em seu comentário ao "Miserere", o Salmo 51).
Quando eclodiu a Reforma protestante, todos os seus
ramos ortodoxos adotaram a doutrina da salvação pela fé apenas como uma marca
doutrinária importante. Milhares de almas que viviam oprimidas sob severo
legalismo passaram a ter acesso à pregação bíblica e à leitura das Escrituras,
descobrindo que Deus salva a todo aquele que verdadeiramente crê nEle, à parte
de frágeis obras humanas.
Vejamos alguns trechos de documentos confessionais de
igrejas protestantes, que afirmam categoricamente a salvação pela fé apenas:
"Somos reputados
justos perante Deus, somente pelo mérito de nosso Senhor e Salvador Jesus
Cristo pela Fé, e não por nossos próprios merecidos e obras. Portanto, é
doutrina mui saudável e cheia de consolação que somos justificados somente pela
Fé, como se expõe mais amplamente na Homilia da Justificação." (39 Artigos
de Religião, da Igreja Anglicana)
"I. Os que Deus
chama eficazmente, também livremente justifica. Esta justificação não consiste
em Deus infundir neles a justiça, mas em perdoar os seus pecados e em
considerar e aceitar as suas pessoas como justas. Deus não os justifica em
razão de qualquer coisa neles operada ou por eles feita, mas somente em
consideração da obra de Cristo; não lhes imputando como justiça a própria fé, o
ato de crer ou qualquer outro ato de obediência evangélica, mas imputando-lhes
a obediência e a satisfação de Cristo, quando eles o recebem e se firmam nele
pela fé, que não têm de si mesmos, mas que é dom de Deus. (Confissão de Fé de
Westminster, da Igreja Presbiteriana).
"Ensina-se
também que não podemos alcançar remissão do pecado e justiça diante de Deus por
mérito, obra e satisfação nossos, porém que recebemos remissão do pecado e nos
tornamos justos diante de Deus pela graça, por causa de Cristo, mediante a fé,
quando cremos que Cristo padeceu por nós e que por sua causa os pecados nos são
perdoados e nos são dadas justiça e vida eterna. Pois Deus quer considerar e
atribuir essa fé como justiça diante de si, conforme diz São Paulo em Romanos 3
e 4." (Confissão de Augsburgo, da Igreja Luterana)
"A salvação é
nos oferecida pela graça mediante a fé no sacrifício de Jesus Cristo
na cruz do
Calvário.Ela é eterna, completa e
eficaz."(Declaração de Fé, da Convenção Geral das Assembleias de
Deus no Brasil).
No meio evangélico atual, fortemente influenciado pela
heresia semipelagiana, muitos desinformados pensam que são protestantes por não
terem imagens na igreja, por não batizarem crianças, por não crerem na presença
corporal de Cristo na eucaristia nem na regeneração batismal. Ora, Lutero
aceitava tudo isso! Para ele, as grandes marcas de identidade da Reforma que
ele e outros desencadearam eram "sola scriptura" (as Escrituras como
única regra de fé), "sola gratia" e "sola fide" (salvação
apenas pela graça, por meio da fé apenas). Por "sola fide",
entendemos que todos os nossos esforços são inúteis para a salvação, devendo
nós descansar totalmente na graça de Deus. Significa que obras não salvam. Que
a nossa frágil obediência não pode suportar a severidade do juízo de Deus. Em
resumo, a fé apenas salva. Calvino levou a "sola fide" ainda mais
longe, ao afirmar que um verdadeiro cristão não poderia perder a salvação. A
doutrina da salvação pela fé apenas foi uma constante que uniu os reformadores.
Não é a forma de batismo, a visão eucarística e o estilo de culto que fazem um
protestante, mas a aceitação das cinco solas (além das três já citadas,
temos a "solus
Christus"-apenas Cristo, e a "Soli Deo Gloria"-glória somente a
Deus).
Notemos que a negação do princípio de que a salvação é
pela fé apenas, gerou na Igreja Romana tudo aquilo que, atualmente, nós
consideramos errado, e que nos separa dela. Se a salvação não é pela fe apenas,
só um tolo afirmaria que tem certeza de salvação. Pois, por mais que nos
esforcemos, sempre temos algum erro. E, como disse o apóstolo, se alguém desobedece
a um ponto da lei, é como se quebrasse todos. Logo, sem o "sola
fide", não posso ter certeza de minha salvação, e devo buscar auxílio em
quem ou no que seja mais santo do que eu: santos mortos, a Mãe de Deus,
relíquias, a hierarquia da igreja, indulgências, esmolas, boas obras, orações
para os falecidos,etc. Assim, o erro mestre do papado foi a negação da salvação
pela fé apenas, que pode até mesmo ter se propagado, no passado, pela ambição
de bispos corruptos, ansiosos por vender salvação ao povo e ter um rebanho que
os seguisse sem questioná-los.
Nosso pastor é Jesus Cristo. E como bom Pastor que é,
nunca deixa que suas ovelhas se percam. É normal que as ovelhas se desviem e
ajam de maneira como não deveriam, mas o verdadeiro Pastor sempre as levará de
volta ao redil. Como Cristo poderia dizer ao Pai, ao lhe entregar o Reino no
final de tudo: "Pai, tal ovelha tua comeu o que não devia, por isso eu não a conduzi até o descanso
eterno"? Bons pastores não levam em conta os eventuais desvios das
ovelhas, mas sempre as reconduzem ao caminho correto.
Sinceramente, não consigo entender o fato de muitos
irmãos, em diversos grupos da Cristandade, negarem a salvação pela fé apenas,
diante do tremendo evento da encarnação e do horrível espetáculo da cruz de
Cristo. Porque ele sofreu tanto, viveu tão pobremente, foi tão injustiçado,
experimentado nas dores e fadigas, e teve que suportar a severidade do juízo do
Pai, se em última análise a salvação depende de minha própria perseverança e
das obras que faço (ou deixo de fazer, em alguns casos, coisas mínimas)? Você
que creu e foi batizado (Mc 16.16), que recebeu o plano de redenção de Cristo e
nasceu de novo (Jo 3), não fique angustiado, morrendo de medo de perder a
salvação por algum pecado que porventura cometa as vezes. Cristo sofreu demais
por você, conhece a sinceridade do teu coração, e é infinitamente sábio. Não dê
ouvidos a pastores teologicamente e biblicamente confusos que ficam ensinando
que a cada vez que pecamos (mesmo em coisas pequenas), perdemos a salvação. È
uma vergonha inominável que, em muitas igrejas evangélicas, alguns pastores
ainda julgam dessa maneira. Nossos irmãos católicos estão mais crentes na graça
do que estes protestantes de araque, visto que na Igreja de Roma, ao menos há a
purificação do purgatório no caso de pecados não muito graves (Aliás, falando
nisso, você sabia que a própria Igreja de Roma está avançando nessa matéria?
Consulte a "Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação").
Com o coração transbordando de gratidão à misericórdia
divina, oremos:
Graças te dou, Pai Todo-Poderoso, por me salvares
mediante a fé apenas, não levando em conta a debilidade de minha obediência ou
de minhas obras. Que eu possa ser fiel a esse chamado, e com o mais puro amor
transitar o caminho da santidade e trabalhar em prol do teu reino. Por Cristo,
nosso Senhor. Amém.
"Sou chamado? Que trarei
Como oferta ao meu Rei?
Pobre, cego e nu sou eu,
que, trêmulo, me prostro aos teus
pés.
Só o pecado tenho de meu;
Mas pecado não expia pecado.
Fui chamado? - um herdeiro de
Deus!
Lavado, remido, por precioso
sangue!
Pai, leva-me em tua mão,
Guia-me àquele país melhor,
Onde minha alma estará
descansada,
Junto aos braços do meu
Salvador."
Antigo hino batista
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