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quarta-feira, 15 de março de 2017

História da música na igreja - séculos I ao VII

Com esse artigo, gostaria de iniciar uma série de textos a respeito da evolução e características da música no culto cristão, do período dos apóstolos até os nossos dias. Começaremos falando da música sacra da Igreja primitiva.

Podemos observar, pela Bíblia, que a música sempre participou do culto à Deus. No período veterotestamentário, os levitas (descendentes de Levi, filho de Jacó) eram os responsáveis pelos cânticos, que eram acompanhados por uma série de instrumentos de corda, de sopro e de percussão. O livro de Salmos tornou-se o hinário do povo de Israel por excelência.

No Novo Testamento, vemos os apóstolos cantando com Cristo. Na ocasião, havia se desenvolvido a liturgia não apenas no Templo de Jerusalém, centro máximo da adoração judaica, mas também nas sinagogas, onde o povo ouvia a proclamação da Palavra de Deus, e oferecia suas canções e orações.

Sabemos que o Cristianismo é oriundo do Judaísmo. O Salvador e os apóstolos eram judeus. Por isso, esse modo de cantar do antigo povo de Israel foi a grande influência dos hinos cristãos nos primeiros séculos. Outra fonte de influências foi a música grega. Sendo o grego a "língua internacional" da época, os livros do Novo Testamento foram escritos nessa língua. E na medida em que o Evangelho se espalhava pela Ásia, Europa e África, muitos homens e mulheres de fala grega foram acolhidos no seio da Igreja.  A música era praticamente uma ciência para os gregos, que tentaram sistematizá-la de forma racional e matemática. Dessa associação de características judaicas e gregas, desenvolveram-se as primeiras gerações de hinos cristãos.

Nesta, que foi a primeira fase da música no culto cristão, temos algumas peculiaridades. As melodias eram cantadas em uníssono e, provavelmente, sem acompanhamento instrumental (pois os instrumentos eram considerados, por vários Pais da Igreja, como "sombras da lei" ou associados ao paganismo dos gentios) e possuíam poucas variações de altura, raramente ultrapassando a oitava. Provavelmente o termo "cantochão" daí se deriva.

Temos registros dos cânticos por parte de Inácio, bispo de Antioquia. Ele introduziu o costume da "salmodia antifonal" na liturgia cristã. Essa consiste no canto intercalado entre grupos na congregação, ou entre esta e cantores "especializados".

Mesmo o intelectual pagão Plínio, o Jovem, registra os cânticos da Igreja, afirmando que os cristãos tinham o "(...) costume de se reunirem num dia fixo, antes do nascer do sol, para cantar um hino a Cristo como a um deus"

Mas quais hinos eram cantados? Além dos Salmos, vários outros cânticos, alguns provenientes dos Evangelhos. O Magnificat (Cântico de Maria – Lc 1.46-55) e o Nunc Dimittis (Cântico de Simeão – Lc 2.29-32) são alguns deles. Aos poucos, entre os séculos II e IV outros hinos, geralmente escritos em grego, surgiram. Entre os hinos desse período, temos o "Luz bendita", até hoje entoado nas igrejas católicas gregas. Também temos as "Odes de Salomão", coleção de hinos escritos em siríaco. Alguns pais da Igreja do período, como Clemente de Alexandria e Gregório de Nazianzo também escreveram hinos.

No século IV, viveu Éfrem, o Sírio. Grande apologista da sã doutrina, escreveu muito de sua obra na forma de hinos. Por isso ficou conhecido como "a cítara do Espírito Santo".

No Ocidente, o grande teólogo e bispo Ambrósio de Milão era um amante da música. Escreveu muitos hinos, cujas traduções podem ser ouvidas até hoje em muitas igrejas, além de arranjar melodias no estilo daquelas compostas pelos primeiros cristãos. Ambrósio também compilou os primeiros hinários, e esse tipo de música ficou conhecida como "canto ambrosiano". Agostinho de Hipona, considerado o maior dos Pais da Igreja, reconfortava sua alma nos cultos da igreja de Milão, relatando o seguinte em suas célebres "Confissões":

"Quantas lágrimas verti, de profunda comoção, ao mavioso ressoar de teus hinos e cânticos em tua igreja! Aquelas vozes penetravam nos meus ouvidos e destilavam a verdade em meu coração, inflamando-o de doce piedade, enquanto corria meu pranto e eu sentia um grande bem-estar.” (Agostinho, Confissões)

A tradição atribui o célebre hino latino "Te Deum" (A Ti, ó Deus, Louvamos) à autoria conjunta de Ambrósio e Agostinho.

Enquanto isso, no Oriente, João Crisóstomo, arcebispo de Constantinopla, encarrega o músico da corte imperial de desenvolver músicas para as igrejas. A partir daí surgirá o "canto bizantino", até hoje entoado nas Igrejas Ortodoxas.

O auge de toda essa produção de hinos se dá com o chamado "canto gregoriano", baseado nos já citados hinos dos primeiros cristãos. Recebe este nome devido ao papel indispensável do papa Gregório Magno em sua organização Escritor de muitos hinos, como o "Audi Benigne Conditor" e o "Nocte Surgentes", Gregório compilou também um "Antifonário", com os textos das Horas Canônicas e um "Gradual", com os cânticos utilizados na liturgia da missa. Iniciou também uma "Schola Cantorum", que traria grandes desenvolvimentos a esse tipo de canto, originalmente chamado de "canto romano". Além de ser cantados em uníssono e sem acompanhamento, tinham como característica a grande frequência de passagens melismáticas.

O canto romano ou gregoriano vicejaria na Europa nos séculos seguintes, tendo se expandido, entre outros fatores, graças à tentativa de Carlos Magno de unificar a liturgia em seu vasto império. A partir de então, essa veio a se tornar a música por excelência da Igreja ocidental durante séculos.

No entanto, nesse período, a congregação tornou-se uma mera expectadora da liturgia divina. Estabelecendo-se o latim como língua litúrgica oficial (mesmo que o povo não a entendesse), o canto gregoriano se tornou prática exclusiva dos sacerdotes e de coros treinados. Somente com a Reforma Protestante do século XVI veremos a liturgia contar novamente com a participação popular. Na Igreja Católica, haveria uma série de inovações na música, que veremos em outras postagens. Mas no seio dessa instituição, a partir do século XIX, graças a obra dos religiosos do "Mosteiro de São Pedro de Solesmes", o canto gregoriano passa a ser muito mais valorizado, divulgado e estudado. Atualmente, em várias lojas e livrarias podemos encontrar cds deste estilo gravados por coros de monges de várias partes do mundo. Na opinião do Rev. João Wilson Faustini, pastor da Igreja Presbiteriana Independente (IPIB), e grande especialista em música litúrgica, o canto gregoriano “É considerado o tipo mais puro de música sacra que existe, por ser completamente diferente da música secular e estar associado só a cantos litúrgicos”.

No próximo artigo, estudaremos o desenvolvimento da música eclesiástica na Idade Média.


                                                                  APÊNDICE:
            Mas Giovani, eu vi no Youtube uma gravação de canto gregoriano em que se invoca "lúcifer". Como explicar isso?

R. Na verdade, existe a tal palavra, mas devemos entender que no contexto em que está sendo usada, não se refere ao adversário de nossas almas, e sim a nosso Senhor Jesus Cristo. Trata-se de um canto da Vigília de Sábado Santo na qual Cristo é devidamente chamado de "astro da manhã", que em latim se diz "lucifer". Sabemos que o diabo não é mais um anjo de luz, mas Cristo é por excelência um astro resplandecente brilhando como a manhã da vida eterna em nossas almas (Ml 4.2, Pv 4.18), . Por último, na Vulgata, tradução latina da Bíblia feita por Jerônimo, podemos ver que "lucifer", em outras passagens, também tem um bom sentido, como usado em II Pe 1,19 (traduzida na versão Almeida como "estrela da alva"). Assim sendo, quem atacou a ICAR, na Internet, com esse argumento, deveria estudar mais.